segunda-feira, 15 de julho de 2013

O bandolim de Dona Aidê: uma desculpa para relembrar...



Não, nunca a vi tocar, sequer a ouvi, mas sei que sabia tocar o instrumento. Sei que sabia por que ensinava minha amiga Lelê que ia ao sótão de sua casa para aprender – meio a contragosto! O bandolim era de Dona Aidê.

Fui algumas vezes com ela... talvez apenas uma. Lugar enorme que se chegava por uma escada estreita. Lá em cima, cadeiras e um suporte de partitura para que Lelê exercitasse. Eu só escutando aquele dedilhar...

Excitava-nos a imaginação uma casa tão grande, com porão e sótão! 

Dona Aidê era professora de música. Lecionava no ginásio da cidade. Uma mulher pequenina de altura, de corpo e de gestos. Falava baixo e não me lembro dela brava. Adorava suas aulas.

Sempre tive aulas de música com ela, desde o grupo escolar. Lá ensinava-nos a cantar em cânone[1]: após a primeira voz cantar as duas frases iniciais, a segunda voz começava o mesmo canto e, finalmente a terceira e última iniciava – finalmente todos juntos cantando aquelas vozes alternadas.

Era uma beleza!

Desperta no bosque
Gentil primavera
Com ela chegou o canto
Gorjeio do sabiá
Lá lá lá lá lá lá lá...

 Com lindos trinados
Suaves e belos
Gentis vão os passarinhos
Saudando a primavera
Lá lá lá lá lá...

Dona Aidê tinha uma gaitinha mínima que usava para dar o tom em que iríamos cantar. 

Fiiiiiiiiii... De novo fiiiiiiiii... Um, dois, três... Fazia com as mãos de maestro marcando o compasso e começávamos: Desperta no bosque...

Canto orfeônico fazia parte das disciplinas no grupo escolar e também no ginásio. Aprendíamos a solfejar, cantar e ler notas. Sabíamos qual era nossa voz - como eram classificadas - se contralto, soprano, etc. era assim que éramos destinados às vozes nas músicas. Das mais agudas às mais graves.

A classificação se dava com a professora ao piano – da escola – fazendo os acordes e nós, um a um, cantando as escalas: do, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó... e ia repetindo mais e mais agudo até onde se conseguia cantar sem desafinar.

Determinadas as vozes, a sala era dividida em fileiras: a primeira voz, a segunda voz e a terceira voz. Depois era só aprender a melodia de cada uma.

Ah! Sim, o bandolim...

As aulas eram dadas no sótão da casa da dona Aidê, um magnífico sobrado na esquina da Rua Pernambuco com a Rua Piauí, em Avaré.  Entrávamos por uma área (terraço) com grades trabalhadas em ferro fundido, passávamos pela sala de jantar e, não sei como, chegávamos à escada. 

 Eu ficava fascinada pelos lindos móveis antigos, mas não podia ficar olhando, pois minha mãe dizia que era falta de educação. “Não se repara na casa dos outros, menina! Não é bonito!”



Nessa foto de 2009, não dá para se ver o sótão, fica na outra rua à direita da imagem, pois é um sobrado de esquina. Percebe-se o porão, onde o pai de dona Aidê tocava clarinete. O sobrado, nesta foto, já está com outra aparência, tinha sido reformado. 

A área ou terraço, não era fechada por vidros, antigamente. Onde se vê o portão de grade, bem à esquerda, tinha uma cerca baixa de alvenaria e grades de ferro que protegia o rio (sim ali passa um rio). A primeira janela – também de grade – era uma porta de garagem – a entrada do porão.

Era das outras três janelas, na sequência da foto, que se ouvia o som do clarinete dos Sr. Manuel Afonso. Tantas vezes parei na calçada para escutá-lo... um som claro, suave, tão agradável! 

Que bom seria se ainda hoje tivéssemos aulas de canto orfeônico nas escolas. A musicalidade faz falta. O compasso, o aprimoramento do escutar, o distinguir instrumentos, saber o que são “vozes” e qual é a de cada um, a complexidade de se cantar em conjunto e onde a individualidade completa o todo... 

Precisamos relembrar Villa Lobos que introduziu o canto orfeônico nas escolas e regia grandes multidões. Acho que foi ele quem incentivou Dona Aidê. 

Villa Lobos esteve em Avaré em 30 de agosto de 1931. Regeu um concerto no antigo Cine Theatro Santa Cruz. Acompanhado de sua primeira esposa e pianista Lucília, e dos pianistas João de Souza Lima, Guiomar Novaes e Antonieta Rudge Müller, além do violinista belga Maurice Raskin e das cantoras Anita Gonçalves e Nair Duarte Nunes. Compunham o que se chamou a Caravana da Arte Brasileira que percorreu 54 cidades do interior paulista que eram servidas pela Estrada de Ferro Sorocabana.

Foi inspirado nessa excursão que Villa Lobos teve a ideia de compor O Trenzinho do Caipira que integra as Bachianas Brasileiras nᵒ 2 na qual o som da locomotiva é imitado pelos instrumentos da orquestra[2].

Anísio Teixeira, grande educador brasileiro, naquela ocasião, integrou-se a uma comissão do Ministério da Educação e Saúde encarregada de estudar a reorganização do ensino secundário no país e, na condição de Secretário de Educação, convida Villa-Lobos a organizar e dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística - SEMA.

É por ocasião dessa empreitada que Villa Lobos pesquisa instrumentos e melodias folclóricas pelo interior do Estado de São Paulo e, animado, propõe à Vargas, seu apoiador que institua o ensino obrigatório de música e canto orfeônico nas escolas.

Vargas cria em 1932, o Curso de Pedagogia de Música e canto Orfeônico ministrado por Villa Lobos.

Não há dúvidas das influências que isso causou pelo interior afora e da mesma maneira que Villa Lobos conheceu nosso folclore paulista, os caipiras – habitantes do interior – conheceram ou reconheceram uma orquestra e seus vários instrumentos. 

Também é sabido que no interior havia Bandas Municipais que tocavam músicas populares, cujos músicos tocavam “de ouvido” ou sabiam ler partituras. Essas bandas apresentavam-se nos coretos dos jardins e praças... Mas isso é pra outra conversa.


[1] Chama-se cânone a forma polifônica, em que as vozes imitam a linha melódica cantada por uma primeira voz, entrando cada voz, uma após a outra, uma retomando o que a outra acabou de dizer, enquanto a primeira continua o seu caminho: é uma espécie de corrida em que a segunda jamais alcança a primeira.
[2] Informações tiradas de texto do historiador Gesiel Junior. Para saber mais ver: http://www.itaponews.com.br/v1/maiscidades/avare/2496-ha-80-anos-avare-sob-a-batuta-de-villa-lobos.html  Julho 2013.

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